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A onda

Ao colossal tremer da terra, o fundo do mar se parte, suga alga, concha, baleia, o que passar. No refluxo, cresce a onda de cobre-mundo: apagará desta terra incerta a Vila Anunciação, seus cinco mil habitantes, areias brancas, espreguiçadeiras, quiosques de caipirinha de caju. 

O mundaréu salgado avança, invade, apaga o céu, arrasta. Afoga tudo, bem afogado. 

Uns meros minutos antes, Milton grelhava a anchova na barraca doze, sabia o ponto só pelo jeito da gordura estalar. João espiava Tereza cochilar na rede, sua vigília de antes do café preto, manteiga, pão. Suzana escolhia legumes na venda do Onório, sem saber como terminaria com Pedro. Reinaldo acelerava, atrasado para o dominó das quintas, o dinheiro perdido por recuperar. Joana lia na varanda, cinco páginas apenas para terminar Cem Anos de Solidão, nada em volta importava.

Edinei pasmava escorado no balcão da ferragem, cada esparso passante uma venda perdida. Dona Luíza aguardava no sofá da sala a visita da filha Juliana, que nunca faltava, nem ficava muito. Raimundo, estirado na areia da praia, pensava em coisa nenhuma, a cerveja pela metade, amornando. O sino esperava os braços que puxariam as cordas na praça da Matriz.

No posto Shell, Tião, o cachorro do Zé Elias, ergueu as orelhas. Ganiu. Virou pro Zé. No olhar marejado do Tião, todo um oceano.