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Perfume

Meus quinze anos são ridículos. Ela fez quarenta, contou pra turma. Cantamos parabéns. Dezesseis anos de magistério, acrescentou, orgulhosa. Boca, voz, veludo. Já dava aula de matemática antes d’eu nascer.

Silêncio na sala, fazemos os exercícios. Ela ondula entre as carteiras, magnífica. Essas equações dos infernos não têm resultado, nem fim! Saio do eixo, remexo as pernas. Ela percebe, se aproxima, toca meu ombro, oferece ajuda. Minha situação só piora.

Nem em casa ela me dá sossego. Usa esse perfume morno que gruda em mim. Tomo banho, esfrego, não sai.

Meu pai tem mania de santo. Quadros, estatuetas, tem pela casa toda. Encaro Santo Antônio no corredor. Pergunto por que ele deixou eu nascer tão tarde, por que arruinou minha vida amorosa pra sempre.

Santo Antônio me encara, oco de respostas.

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Banho de sol

Tu vem hoje ver esse teu velho pai, minha filha? Precisamos conversar.

Como tu bem sabe, o Mauro tem bom coração, mas vive nas nuvens. Coisas aleatórias entram na cabeça dele, empurram as que estão acontecendo pra fora. Me colocou pra tomar sol e esqueceu da vida. Quarei muito mais tempo do que podia, fiquei tonto, embaralhado. Tua mãe apareceu, sentada no muro, sacudindo as pernas feito menina, sorrindo pra mim. Ela nunca fez nada do tipo quando era viva, tu bem sabe. Em seguida ficou em pé, abriu os braços, deu um salto mortal – saia esvoaçando e tudo mais –, pousou ereta sobre o muro, impecável. Ficou parada, me observando, aqueles olhos serenos dela. Me chamando pra subir.

Gritei. O Mauro veio correndo, esbaforido.

Tu vem hoje, minha filha? Precisamos muito conversar. E traga uma escada, por favor.

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Cão de guarda

Eu me divertindo no bar do Elias quando você chega, língua de fora, olhar escorrido. Focinhada sutil na minha saia. Sacode o rabo, sedutor.

Lanço o pedaço de linguiça. Nhac, sua bocada justa, irremediável. Nossa primeira comunhão. Você senta, decidido, aguarda a noite passar.

Eu talvez embriagada, dirigindo, você instalado no banco do carona, comedido. As luzes da cidade passando pela janela. Cão da ribalta.

No apartamento, mostro seus novos aposentos. Você grunhe, feliz. Late. Deita, a cabeça entre as patas, o rabo espanando o chão.

Por que esses olhos, imagem e semelhança? Minha mão se aproxima, cautelosa. Afago a suspeita que não me abandona: que você foi homem, morto a espada, reencarnado até me encontrar assim.

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Pandemia

As pessoas não sabem se preparar. Eu sei. Assim que vi a primeira notícia de canto de página sobre o tal novo vírus chinês, comprei suprimentos não perecíveis para doze meses de isolamento. Tenho uma tabela Excel com meu consumo diário nos últimos dez anos, por suprimento, preço, peso, volume, tudo. Cruzei informações, dimensionei custos, medi o espaço necessário de estocagem. As pessoas não sabem fazer estimativas precisas. Eu sei.

Os vizinhos tentaram disfarçar o estranhamento enquanto eu transportava as intermináveis caixas e sacolas pelo elevador. Digo “vizinhos” porque não sei o nome de nenhum deles. E não me interessa. Agora, plenamente isolado, nem os vejo mais. Melhor.

O vírus é magnífico, obra-prima da natureza. Esfera coroada, minúsculo planeta acinzentado donde brotam buquês encarnados, fatais. Colei a foto ampliada na parede da sala. Me exercito olhando pra ela, me alimento olhando pra ela. Manter o foco, sempre.

Temo somente pelas frestas. Janelas, portas, sempre imperfeitas. Toda manhã faço uma varredura. Tenho uma lupa enorme, herança, meu pai míope. Inspeciono, rastejo, a lupa numa mão, a seringa com álcool na outra. No dia em que encontrá-lo, sei que vou hesitar. É de beleza ímpar, sublime. Mas não vou falhar. As pessoas não sabem agir nessas horas críticas. Eu sei.

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Alma penada

Acocorado sobre o túmulo, ele matuta. Muitas noites assim, baforando pra dentro. Elisa já se acostumou, mas os filhos estranham. Têm medo de cemitério à noite, acham que é coisa de maluco. Ele rebate: se alma penada existisse, penaria logo no cemitério? Mais fácil encontrar no shopping.

Traga, matuta, acaricia a lápide. Cada noite, um túmulo diferente. A fumaça subindo pro preto, nenhuma estrela. Escolhe de instinto: nome, datas.

Valéria Sampaio, 1972-2001. Tão jovem. Doença? tiro?

Fecha os olhos, imagina-a baixa, cabelos curtos, escuros, encaracolados. Jeans, blusa branca. Sandálias. Olhar desconfiado. Bochechuda. Vem apressada, entra na farmácia. Para em frente à prateleira de analgésicos. Ele faz um comentário sobre os riscos do paracetamol. Assim, besta, só pra iniciar a prosa. Ela se vira, franze a testa. Terminam no café ao lado, rindo, comendo pão de queijo.

Elisa não gosta que ele invente essas histórias. Perturba as almas, diz. A gente reencarna, caminha tudo de novo, não carece ficar atiçando.

Ele traga, matuta, sente a pedra. Analgésico.

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Cheshire

A sala sobra para o número de pessoas, ambiente climatizado. Alguns não apareceram, compromissos muitos, reais e imaginários. Quarentas, cinquentas, alguns sessentas. Raul, o anfitrião, zelou pelas amenidades: pães franceses, queijos da serra da Canastra, embutidos espanhóis. Vinhos portugueses, cervejas belgas, temperaturas certas para cada caso.

As vozes moderadas dissolvem-se no flamenco ao fundo. Conversas circulares, risadas de coquetel. Os fumantes na varanda, desclimatizados. Falam um pouco mais alto, parece. Riem um pouco mais alto também, parece.

Sandra, a anfitriã, olha o celular, pede licença, dirige-se à parte íntima da casa. Tranca-se no banheiro da suíte. Levanta a saia, senta no vaso. Retira o pequeno frasco da gaveta, derrama cuidadosa o pó branco nas costas da mão, inspira. Mais uma vez. Seu coração acelera. As pupilas estalam. Navega o celular, escolhe a trilha sonora: Moby. Aperta o botão do volume até a bolinha bater no fim da linha.

I’m gonna find my baby, ooh, before that sun goes down.

Se toca, redemoinho que sobe. Sorri, até o fim da boca. Gata de Cheshire.

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Vaga-lume

O enorme aquário da sala abandonado faz muito, ar onde era água. Restam as pedrinhas no fundo seco, o mergulhador que borbulhava, desbotado. A caravela de porcelana naufragada.

Noite de lua nova, sala escura. João afundado no sofá, idoso em tudo, dormita. Luzia assiste à TV, olhos já pela metade, mas notam o pequeno flash de luz esverdeada. Pousado na cabeça do mergulhador, o vaga-lume pisca. Banha a caravela de esmeralda. Luzia toca suave o braço de João: olha homem, lá no aquário.

Dois pares de olhos que piscam do lado de cá do vidro. Seus rostos antigos, escavados de saudades. Acendem, apagam, acendem, apagam. Luzia, João, João, Luzia. Lume que vem, lume que vai.

Na noite seguinte já são centenas deles. Bailam dentro do aquário, sinfônicos. Paredes, estantes, tapetes, tudo pisca. Pulsa.

A TV desligada. João e Luzia entrelaçados no sofá. Embriagados de luz e brevidade.

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Elevador

A menina estica o braço, alcança a maçaneta, gira. A porta cede, ela ganha o corredor. As hawaianas floridas plec-plec-plec no piso. Espera, filha, tenho que chamar o elevador. O pai preparando a mochila na sala. A mãe no quarto ainda, ocupada com o irmãozinho bebê, que chora, inconsolável.

Plantada em frente à porta da máquina encantada que sobe e desce, ela reflete. Afasta os cabelos, faz um binóculo com as mãos diminutas, espia pelo vidro. Escuridão, só. Franze a testa, aperta os lábios. Suspira.

Elevador! Elevador! grita. Elevador! Nada. Ouve o riso grave do pai. Quer descer correndo pelas escadas, mas a mãe nunca deixa. Espera, filha, o pai já vai aí chamar o elevador. O bebê chora.

Elevador! Elevador! ela grita. Mãos na cintura. E o mundo que nunca obedece.

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Tesourinha [⌘]

Minha ideia de fuga era singela: entrar na tesourinha, permanecer, para sempre. Sair da pista à direita, passar por baixo do viaduto, subir à direita, voltar à pista, descer à direita novamente, passar por baixo do viaduto, subir à direita, voltar à pista, descer à direita. Assim, uróboro. Eterno.

As dificuldades logo se apresentaram. Minha gasolina acabaria em algum momento. Mesmo que eu tivesse enchido o porta-malas e os bancos vazios com galões, só teria adiado o fim. E eu teria que parar o carro no meio da tesourinha pra usar os galões. Não se interrompe uma fuga: ouça Bach.

Outra questão crítica era meu sistema gastroenergético. Para continuar dirigindo, eu teria que consumir água, alimentos. Problemas: 1) uma tesourinha é uma sequência vertiginosa de curvas em espelho, beber e comer causaria acidente elíptico, fatal; 2) meus excrementos – acabaria submerso neles.

Cognitivamente derrotado, emocionalmente exausto, tive que abandonar a tesourinha, voltar pra casa. Ter a tal conversa com a Suzana.

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Bolsa

Domingo, metrô esvaziado. Minha estação é sempre a próxima. Saio do vagão, entro no seguinte, a caixa de doces na mão. Compra pra me ajudar! grito. A venda é rara. E pelo doce, não pela ajuda.

Ela está sentada bem ao lado da porta, cochila. Velha já, cabelo ruivo tingido, óculos verdes, desses de grife. Colarzão, vestido floreado. Toda bacana. A bolsa, enorme, solta no colo.

Facinho. Na hora de trocar de vagão, levo a bolsa. Quando ela acordar, já era. Carteira, celular, chave do apartamento, do carro, tudo lá. Busco a Nati de carrão na feira, a cara de espanto dela, sorrisão. Rodamos. Fumamos um, depois vamos pro apartamento da velha, comer tudo que tiver na geladeira. E beber vinho, muito. Depois transar na cama grande e macia, o ar-condicionado ligado a mil, até cansar. Fumar mais um depois.

Vai ser assim, bem assim.