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Taxímetro

A praia fica a uns sete quilômetros. Caminho até o único táxi estacionado na praça. O motorista cochila. É um maia atarracado, a barriga quase toca o volante. Bato de leve na porta. Ele desperta, se ajeita no banco. Limpa os óculos embaçados do calor com um farrapo de flanela. Gesticula para que eu entre. Liga o carro.

Vejo que não há cinto de segurança no banco de trás. Sento no banco da frente. Acordamos o preço (aqui taxímetro é peça decorativa). 

Seguimos em silêncio pela rodovia. O calor amolece o asfalto no horizonte. Inspeciono o painel. Peço que ele ligue o ar-condicionado. Custa um pouco mais, ele diz. Acordamos o novo preço. 

O trânsito fica lento. Logo para. Ele desliga o carro (e o ar-condicionado). Abre a janela. Observa a rodovia calado, o braço polpudo para fora. Coça a bochecha (ouço o roçar das unhas nos tocos da barba). 

Espeto a cabeça para fora da janela. Nenhuma brisa, longa fila de carros, alguns caminhões. Portas abertas, motoristas resignados, fumando. Mata cerrada em ambos os lados da rodovia. Impossível ver o mar. 

Ele boceja. Pergunto se já daria pra chegar na praia a pé de onde estamos. Ele me olha, franze a testa. Limpa os óculos com o farrapo de flanela. Tudo é possível nessa vida, diz. 

Volto a olhar a fila de carros. Nenhum movimento. Nenhuma nuvem no céu.

Ele se remexe no banco. Sem tirar os olhos da rodovia, diz que uma vez caminhou até a praia lá da praça, em pleno sol do meio-dia. Foi logo depois que a Maria morreu, explica, estava fazendo uma besteira por dia. Lá pelo meio no caminho, os miolos fritando, começou a ver umas coisas diferentes. Conversou com gente falecida. Desmaiou. Acordou no matagal à beira da estrada, a noite fechada já. Levantou, terminou o caminho até a praia. Sentou. Ficou ouvindo o mar. Dormiu na areia, a lua por cima. Voltou de táxi pela manhã. Deu rumo na vida.

Tiro o cinto de segurança. Saio do táxi. Olho em volta. O sol me cozinha. Já não sei mais para que lado fica o mar.

Volto para o táxi. Coloco o cinto de segurança. Ele me olha por cima dos óculos embaçados. Peço que ligue o ar-condicionado. Com o carro parado custa um pouco mais, ele diz.

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Gato, pombo, gaivota

Limo, rachaduras, óxidos. Calhas empenadas. Istambul deixa seus prédios envelhecerem. O gato caminha, veludo, pelo telhado. Espreita o pombo alheio.

Chegam do Bósforo as alvas gaivotas, suas estridências, peitos estufados. Reviram os ares com asas espalhafatosas, despertam vivos, mortos.

O pombo voa. O gato fica. Olha o telhado vazio, assombrado de gritos. Ah, o que ele não daria por uma gaivota! Branca, carnuda, alada. 

O gato sonha, felino. Salta como nunca, alcança a gaivota em pleno voo. Firma suas garras no corpo roliço. Entrelaçados, deixam telhados, sobrevoam o Bósforo. Seu focinho de gato aninhado naquele pescoço branco, imordível, para que não acabe.

As gaivotas partem. Permanece o gato, imóvel sobre o telhado, Istambul em volta. Aguarda, em sua eterna paciência de gatos, o novo pombo. Sonha gaivotas.

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Besouros

Noite de lua nova no pátio da casa-grande. Brincávamos sob a luz do poste, enxameada de besouros. Corujas piando, mato, breu. Eu, menino de apartamento em Ipanema, gastando as férias na fazenda dos parentes em Minas Gerais. Ele, Juca, filho do caseiro, habitante da casa-pequena, encravada lá no sopé do morro. Pulávamos para pegar os besouros dopados de luz antes de se esborracharem no chão. Só valia ponto se pegasse assim, no ar. 

Eu saltava, canhestro, Ipanema pesando nas pernas. Não conseguia um mísero ponto, a frustração vermelha nas bochechas que só crescia. Juca subia, levitava, os besouros zunindo direto para suas palmas ásperas, certeiras. Ponto, ponto, ponto: glória de Juca, aquele sorrisão lindo, iluminando meu desespero. Eu tentava em vão pular mais alto, agitava patético minhas mãos de veludo.

Menti que estava cansado, não queria mais brincar. Sentamos na escadaria da casa-grande. A humilhação entranhada em mim. Falei então que eu ganharia facinho se a brincadeira fosse outra, de quem pegava mais onda, lá em Ipanema. Aí sim, só daria eu, podia saber. 

Juca se animou todo.

— Você me leva? Nunca entrei no mar. É salgado mesmo?

Calei. 

Juca esperou pouco. Desceu a escadaria, parou embaixo do poste. Saltou. Pegou mais um besouro impossível, em pleno voo.

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Caixas

Parece que cochila, mas não. Joel vigia firme as caixas de papelão. Piscar só por necessidade. Já se vão quinze anos na loja 15A do subsolo. Joel, as caixas, a única lâmpada no meio do teto, grossa de pó. Bicho não tem, ele passa veneno nos cantos todos, semana sim, semana não.

Sentado no estrado forrado de espuma, aguarda a clientela. Cidade grande, todo santo dia tem gente se mudando. Pouco dinheiro, muita bugiganga. Caixa nova é cara, então eles sempre vêm, pelas usadas. Joel achata, separa por tipo, tamanho, espessura. Coloca as rotas num canto, para algum desesperado. 

Caixa é um mundo. Tem as que a fita gruda bem, as que não. As de ovo, que chegam em quantidade, têm dois buracos de cada lado, pro respiro. Os clientes acham ruim. Joel troça, diz que ovo tem medo do escuro, por isso. Tem cliente que ri, outros não. Reviram as caixas, desarrumam, o nervoso óbvio. 

Não sabem o que fazer com o tralheiro que têm em casa, o que vai dentro do quê. Tanta coisa inútil, cada uma dum formato diverso. Das que quebram, das que não. Mudança é assim, desmancha, avacalha. Muitas vezes, matutando no estrado, Joel se imagina embalando, encaixotando, mostrando pra eles direitinho como se faz. Cada coisa no seu lugar de natureza, tudo pensado, certo, no detalhe. 

Mas que nada! Povo não paga por um serviço desses não. Vale coisa nenhuma. Preferem ficar assim, testa franzida, revirando caixas, resmungando, se perguntando se cabe, se não vai quebrar. 

Vai.

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Mandalas

Se conheceram no ônibus, acaso. Nas costas nuas vistas pela primeira vez, a mandala. Coisa mais linda, quero uma igual!, ele disse. Igual não fica, ela avisou, e não sai mais. Eu sei, ele disse.

A primeira dele foi na barriga, doída que só.

Multiplicaram mandalas, par a par. Quando ela conseguiu emprego, quando ele voltou a falar com o pai, quando viajaram ao Peru, quando ela quebrou o braço de bicicleta. Tudo era motivo.

Um dia o corpo acaba, disso não falavam.

Ela foi chamada a São Paulo, ele ficou. Pelo vídeo, ela mostrava a nova mandala no ombro, montava um sorriso, puxava conversa. Ele aos resmungos, mandala lá no fundo das costas, cicatrizando.

Enfim ele foi. Abraço de afogados no saguão. Gemidos. Choveram mandalas. Até sobrarem só dois exíguos espaços: o canto direito do peito dele, o finzinho da batata da perna esquerda dela. 

Então nada mais foi motivo bom o bastante.

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Dia qualquer

Sábado, sol. Rodrigo lava a louça do almoço. Cantarola. Vê, pela janela da cozinha, a pequena Júlia cruzar a piscina. Caminhando. Sobre a água. 

Piscina que ela não deveria ter chegado perto sozinha. Rodrigo instalou cerca, portão, cadeado. Mas tem a vida dobrada de pai sem a mãe, o cansaço que amortece, o cadeado que será esquecido. Nas noites, o pesadelo se repete: manhã de sol, portão entreaberto, Júlia pousada no fundo da piscina, os olhos baços, as mãos de boneca. 

Chega o dia, e ela caminha. A pequena Júlia, os pés descalços, a água que brilha e não engole. Caminha, não duvida, passo por passo, chega à outra borda. Rodrigo com a esponja espremida na mão, a água escorrendo na pia. A travessia embaralhando a vista, rodopiando no estômago. O tremor incontrolável das pernas.

Júlia agora agachada no lado de lá da piscina, brinca com o patinho de borracha. Alheia e luz. Como se fosse um dia qualquer.

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A onda

Ao colossal tremer da terra, o fundo do mar se parte, suga alga, concha, baleia, o que passar. No refluxo, cresce a onda de cobre-mundo: apagará desta terra incerta a Vila Anunciação, seus cinco mil habitantes, areias brancas, espreguiçadeiras, quiosques de caipirinha de caju. 

O mundaréu salgado avança, invade, apaga o céu, arrasta. Afoga tudo, bem afogado. 

Uns meros minutos antes, Milton grelhava a anchova na barraca doze, sabia o ponto só pelo jeito da gordura estalar. João espiava Tereza cochilar na rede, sua vigília de antes do café preto, manteiga, pão. Suzana escolhia legumes na venda do Onório, sem saber como terminaria com Pedro. Reinaldo acelerava, atrasado para o dominó das quintas, o dinheiro perdido por recuperar. Joana lia na varanda, cinco páginas apenas para terminar Cem Anos de Solidão, nada em volta importava.

Edinei pasmava escorado no balcão da ferragem, cada esparso passante uma venda perdida. Dona Luíza aguardava no sofá da sala a visita da filha Juliana, que nunca faltava, nem ficava muito. Raimundo, estirado na areia da praia, pensava em coisa nenhuma, a cerveja pela metade, amornando. O sino esperava os braços que puxariam as cordas na praça da Matriz.

No posto Shell, Tião, o cachorro do Zé Elias, ergueu as orelhas. Ganiu. Virou pro Zé. No olhar marejado do Tião, todo um oceano.

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Cavalo branco

Só montava nele o Valdo, ginete desde menino. Árabe branco, inteiro, de filme. As ventas escuras infladas, bufando. Olhos esbugalhados, num espanto do mundo. Os cascos sovando brutos o barro do curral.

Ela menina que ninguém notou crescer na fazenda, onze anos talvez, franzina de quebrar. Filha de quem mesmo? Medrosa de qualquer coisa que se mexesse, só do árabe que não. Logo dele, aquelas narinas de dragão, os cascos fervendo. Ela imaginava fazia dias já.  Espiava o árabe, piscava, piscava, piscava, o coração tamborilando. Esperou feito adulta a combinação justa: o Valdo sumido na plantação, o árabe encostado na cerca. Esgueirou-se, escalou as ripas do cercado, deslizou feito sombra para o alvo lombo. Agarrou firme a crina espessa. Deitou a bochecha no pelo liso, o couro morno. Cerrou os olhos, aspirou fundo o cheiro acre do bicho. Ficaria ali uma vida inteira, curta que fosse.

Uma única corcoveada seria o fim, mas o árabe apenas trotou, generoso. Tremelicou indolente o costado, balançou a cabeça, bufou leve. Ela já empertigada, o olhar lá no fim do campo, as mãos engalfinhadas na crina. Seu momento que chega. Ele aumenta o trote, sem pressa. Então toma gosto, dispara. Ela agora sobre seu sonho branco desembestado, o campo em terremoto, seu fino corpo escorregando sem volta, as mãos tenras crispadas na crina.

No baque do chão, algum osso sempre se parte. Um cavalo árabe que some no horizonte. O corpo que fica.

Emborcada no pasto, inerte, gosto de capim na boca, ela pisca. A dor de terra firme paraliza. O coração ciente, compassando. Respiração que volta. O sorriso que tenta sair. Entre os dedos da mão, no punho cerrado, os fios arrancados da crina.

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Riacho

Ronildo traz sempre com ele o banquinho forrado, caminha até o meio da ponte, senta, puxa um cigarro. Se acha que vai armar chuva, vem de capa, bota. Fica admirando o fiozinho de água do riacho bem lá embaixo. Intercala olhando em volta, espia. É ponte curta, aço grosso, rebite. Penhasco agudo. Queda demorada. Ronildo vem todo domingo, final de tarde. Fica coisa de duas, três horas. Volta pra casa sacolejando o banquinho. Não falha. Nunca. Cinco anos já.

Foi no Seresta, cerveja nem tinha mais de tão tarde, o Nico olhou sério pra ele, disse: acontece quase sempre no domingo, na tardinha. Solidão aguda, desgosto sem cura. Gente bem nova. Dar cabo da vida assim, tão cedo, pode? Remédio forte, ponte, pulso atorado, o que calhar. Tá nas estatísticas. 

Nico sabe das coisas, vive na internet.

Aquela ponte perfeita, Ronildo sabe que um dia vai acontecer, certo como o céu. Gente ali do vilarejo. Filho de algum conhecido. Sobrinho, que tem sempre em quantidade. A neta do Antônio, séria candidata, sempre amuada. Quem vai saber? Daí o plantão, rigoroso. Se não aconteceu ainda é porque enxergam a fumaça do cigarro, ele na vigília, matutando. Almas salvas por um banquinho, uns poucos cigarros. Custa? O povo não entende. Não quer reputação, só que reconhecessem. Que não ficassem zoando, chamando de Ronidoido da Ponte. Todo domingo, cinco anos. Sem falha. Quantas almas já? O riacho lá embaixo, esperando.

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Marulho

A ideia foi dela. Hesitei: Brasil não tem fim, estrada bruta, buraqueira. Numa Kombi? É dura de guia, barulhenta. Sonho não tem adio, vida passa assim, num piscar, ela disse. Trinquei mandíbula, revirei os olhos. Cabeça fervendo. Vambora então, cedi. Ela feliz que brilhava, catou logo uma Kombi toda feita já, cama, trempe.

Norte? Ela pergunta. Isso, Norte. Amanhã, bem cedo, digo.

Banho em posto de gasolina, cozinhando na beira da estrada. Rodamos. Verde pra onde se olhe. Duzentos e vinte milhões de criaturas, cadê? Só vejo mato, boi, brinco. Ela firme no volante. Sorriso dela espalha por tudo, cansa nunca. 

Dormindo onde calha, que Deus protege quem vaga. Às vezes discutimos, fecho a cara. Ela cantarola, cada qual seu jeito de lidar. Não demora a conversa volta, mansa. Kombi não tem silêncio, não cabe.

Três meses de estrada já. Lua quase cheia. Estacionamento à beira da praia, marulho. Deitados, ela ressona, acabada do dia. Eu de olho estalado, o amanhã na cachola. Estrada sem fim? Remexo, coço. Porque na Kombi se quiser não acaba. É pegar a próxima saída, ver onde dá. Parar quando tem cidade, caminhar de mão dada na praça, tirar foto, comer pastel. 

Ela dorme. Reviro. Quando o novo dia brotar, acabou. É rumo de casa, decisão. Plantar raiz. 

Olho enfim pesa. Apago. 

Marulho. Sol que chega, cuidadoso.

Quatro meses de estrada já. Ideia dela.