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Lombada

Daqui tudo que vejo é a lombada. Cem Anos de Solidão. Macondo, tapetes voadores. Úrsula, el coronel Aureliano Buendía. Poeira, bananas, gritos de guerra, a chuva pela janela. Quinhentas páginas, trinta linhas por página, quinze mil trilhas percorridas a olho nu.

Minha arrebatada retina, dilata. Abro o livro? Não, novas trilhas, melhor. A lombada, minha biblioteca silente, as vozes. Cubro os ouvidos. Cantarolo.

Gabo delira, insulta repórteres. Cerra enfim os olhos, a cama qualquer. Os lençóis postos pra lavar. Móveis e objetos preservados, por ora.

Livro que se fecha, redemoinho. Já se vão duzentos mil anos de solidão, estima-se.

A lombada, inquieta lápide.

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Colesterol

Não sei, nunca medi. Então não tenho, tecnicamente falando, diz. O copo de cerveja na mão. O olhar grave sobre a barba grisalha. As bochechas vermelhas. Estamos bebendo desde o início da tarde. Já é noite.

Você pode ter um câncer, por exemplo, continua. Aparece, você percebe. Morre, ou sobrevive. Mas colesterol, não, é uma ficção da ciência, uma das. Que nem glicose, triglicerídeos, essas porras todas que as pessoas medem. Porque os médicos pedem. E os laboratórios festejam. E os planos de saúde engordam. Parasitas.

Emborca o que restava no copo. Abro mais uma, sirvo. Colarinho perfeito.

Comigo não. Gente normal enfarta, fica brocha etc. Assim. Natural. Real. Gosto de alface, brócolis, essas coisas, mas se eu não gostasse, não comia, nem fodendo.  Nunca achei que viver muito fosse uma boa ideia, sabe? É cansativo, e egoísta. A gente tem que dar espaço pra meninada brincar de ser. A fila anda.

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Entrevista

Feita esquadro na estreita cadeira, as mãos unidas sobre o colo, a entrevistada responde sobre sua experiência recente em vendas. Colar discreto, brincos mínimos. Pernas cruzadas, saia preta abaixo dos joelhos, saltos baixos. Blusa florida, sem decote. O rosto maquiado ao milímetro.

O entrevistador escuta. Observa-a por cima dos óculos engordurados. Debruçado, anota. A gravata enovelada sobre a mesa. Os longos pelos do peito escapando pelas frestas da camisa.

Pausa. Ela aguarda, ereta. Imóvel, pisca. O esgar colado no rosto.

Ele se reclina na macia cadeira de altas espaldas. Ajeita os óculos. A gravata agora percorre o torso, cai à direita. Coça o nariz. Pigarra. Funga. Franze a testa. Indaga sobre pretensão salarial.

Ela se remexe, sutil. Descruza as pernas, troca a perna que estava em cima, cruza-as de novo. Reacomoda a saia, discreta. Realinha os ombros. Suas costas doem.

Sorri. Responde.

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Salto

Perfeitamente ereto sobre a ponta da plataforma, ele abre os braços em cruz. Cerra os olhos, inspira, fundo. Recapitula o salto: dois parafusos, dois carpados, o mergulho final. Não há erro possível.

Lá embaixo, o enxame de rostos indiscerníveis. Profusão de mãos que acenam, apontam. Música. Risos?

Salta.

Executa o primeiro parafuso, preciso, autômato. No segundo, sua pele se desprende, toda. Flutua, fantasmagórica. Os jurados não perdoarão, sabe. Executa o primeiro carpado sem o incômodo invólucro, a leveza inédita. Nasce o segundo, nunca tão perfeito.

Cadente, o vento acariciando a carne exposta, termina à perfeição: cabeça, tronco e membros tocam o asfalto no mesmo milésimo de segundo.

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Chuva

Ana vê as nuvens, não dá bola. Deitada de bruços sobre a grama do parque, lê Quintana. Os pés acompanham a batuta dos versos. Esquece até de piscar os olhos.

O primeiro pingo cai-lhe bem na ponta do ombro tão magro. Ana nota, nada faz. A gota fica ali, rotunda, equilibrada sobre a magnética pele negra. Recusa-se a escorrer daquele cume: a vista de Quintana é privilegiada demais.

Vêm as outras gotas. Infiltram-se no denso cabelo de Ana, esborracham-se sobre sua camiseta, seus jeans. Dissolvem-se, eternas mártires do mundo mineral.

Ana no meio do poema, pétrea, não recua. Novas gotas bombardeiam as páginas, insensíveis. Borram as letras, erguem bolhas no papel.

Quintana desfigurado em indiscerníveis tons de cinza, ilegível.

Ana se vira, deita de barriga pra cima, abraça o livro sobre o peito. A chuva vira tormenta. Tudo agora é água.

Olhos fechados, abre um sorriso radiante, impermeável.

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Lista de compras

Açúcar não precisa. Compre sal, muito. Não o rosa do Himalaia, nem o marinho de Guérande. Cisne mesmo, aquele bem fininho, que empedra nos rins. Quero assistir o pó branco geando sobre o teu prato farto.

Vinho não precisa. Nossas taças estão todas quebradas. Não joguei fora, sei lá por quê, mas não dá pra usar: sangra a boca, em profusão, já tentei. Teu uísque doze anos está quase no fim. Compre.

Não esqueça das frutas e verduras. Estragam rápido, então temos que comê-las logo, sem pensar, uma bênção. Arroz, feijão, massa, molho de tomate, essas coisas teimosas que não perecem, não precisa. Comprei toneladas da última vez. Dá pra ficar uns seis meses sem sair de casa se houver uma guerra, epidemia. Ou se eu partir levando todas as chaves. Ou se eu ficar, lacrando todas as portas e janelas. Ou se eu partir levando todas as chaves e lacrando todas as tuas portas e janelas.

Agora o mais importante: o sabão das roupas. Compre o Omo superconcentrado. Minhas roupas estão com um cheiro estranho, insuportável. As tuas não, não cheiram a nada.

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Macarrão com queijo

A minúscula mão se abriga dentro da minha. Caminhamos pelo shopping. Tá com fome, Pati? Sim, quero macarrão com queijo, diz. OK, macarrão lá vamos nós! Estico a coluna, faço cara de Lancelot, meu braço em lança apontando solene para a praça de alimentação. Ela ri, toda.

Trotamos. Os cachos pretos sobem e descem.

Só queijo mesmo, sem mais nada, nem molho? A atendente hesita. Os cachos confirmam, resolutos: u-hum. Sentamos. Pati come, ávida, os cabelos e o fettuccine uma massa só. Emborca o suco de laranja. Limpa a boca com as costas da micromão. Agora quero ir pro parquinho, sentencia. Inegociável.

Tento segurar firme sua mão, mas ela já não cabe na minha. Resvala. Bolsa, vestido, colar. Salto. Cabelos tingidos. Passos pensados. Resta o sorriso, igual.

Caminhamos pelo shopping, graves.

Está com fome? pergunta.

Sim. Quero macarrão com queijo, brinco. Ela não sorri. Não lembra.

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Chave

Toc-toc-toc no corredor lá fora. Ela, enfim. Passos ansiosos rumo à porta. Pausa. Desenho-a vasculhando a bolsa, cada cílio, cheiro, resmungo. A pele macia da mão decidida. Se não achar logo, apertará a campainha.

Estalido de chave girando. Maçaneta que cede, dobradiça que geme. Porta aberta. Ela, meu esboço no espelho. Sorri. Profere o código secreto: Oi Mor, cheguei.

Toc-toc-toc dentro de mim. Eu, vaga-lume. Avesso da angústia.