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Fotografia

Aos solavancos, consigo enfim desemperrar a gaveta da estante herdada do vô Nunes. Desperta, a fotografia desliza do vão, pousa de bruços no assoalho. No dorso amarelado, a anotação: “Outono, 1937”.

Agacho-me. Viro a foto. Em tons de sépia, ela posa sentada na cadeira de vime, vasos bojudos ao redor, flores, uma parede de pedras ao fundo. Cabelos curtos, lisos, escuros. Maquiagem densa no olhar atento. Lábios finos, sisudos. Vestido de renda clara. O cigarro fumegando entre os dedos.

Deslizo pela imagem. Toco seu rosto.

Volto ao verso: “Outono, 1937”.

Frêmito.

Meu sono de pedra de antes evapora, noite após noite. Erro pela horda de sonhos em preto e branco. Percorro pontes, ruas, parques. Encontro-a sempre a caminho, apressada. Aproximo-me. Pergunto seu nome. Ela se vira. Traga. Sorri.

Desperto.

Acendo o abajur. Minha pulsação retumba. Olho o relógio: três e quinze da manhã. Três e dezesseis. Dezessete. O tempo, obtuso, me arrasta. Fecho os olhos. Caminho de volta.