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Mapa de família

Nosso pai morreu, tristeza aguda, uma semana depois do câncer levar a mãe. Veio o luto, forte, em seguida a herança: casarão em bairro nobre, carros, muito dinheiro no banco. Muito. Rute e eu no frescor dos vinte e poucos anos, ricos e sós de uma hora para a outra. Sentados na sala de estar, a modorra flutuando em volta, ela disse quero conhecer o Brasil todinho, cada palmo. Cada palmo não dá, mas cada cidade, suponho que sim, falei. Espalhamos o velho mapa do pai no chão. Rute pesquisou na internet: cinco mil, quinhentos e setenta municípios. Caralho! falei. Fiz a conta: ficando só dois dias em cada um, são trinta anos de viagem. E daí? ela disse. A gente tá bem novinho ainda.

Partimos. Começamos pelo Norte, vasto. Calor sem trégua, chuva de balde. Estradas interrompidas, balsas. Trezentos e sessenta graus de mato, bicharada cruzando a pista. As cidades maiores empurradas para o final da fila. Vagamos por ruelas, descansamos em bancos de praça, espiamos igrejas. Muita cerveja, quilos de conversa fiada jogada fora com quem nos desse trela. O povo todo intrigado daquela viagem infinita nossa.

Depois Centro-Oeste, Nordeste. Cerrado, sertão, mar de sonho. A Rute sempre atualizando a planilha. A gente não podia pular cidade, nem repetir, era compromisso sagrado nosso. Sem planilha não tinha como. Os anos passando, embaralhando ruas, casas. Uma massa só na memória entulhada. Milhares de novos conhecidos, amigos, amores até. Deixados para trás. Nossa mão única. A estrada sempre à frente.

Sudeste quase todo rodado. Quantas falta? eu perguntava. Rute consultava a planilha amarelada, dizia na hora, precisa. Sorriso ansioso.

Cigarros, janelas abertas para o vento entrar. As rugas se aprofundando nos cantos dos olhos dela. Meus cabelos grisalhos enchendo o retrovisor.

No Sul, o inverno. Campos geados. Rodas de chimarrão. Muita estrela no céu.

BR 471, alguns quilômetros para chegar ao Chuí. É a última, avisou Rute, a voz tremida. Os olhos pregados na planilha, piscando. Parei o carro no acostamento. Saímos. O vento polar rasgando o rosto. Puxei um cigarro. Fumamos meio a meio, apertados um no outro. O campo se espalhando até o fim do nosso mundo.

— Teu celular tá com sinal?

— Sim — ela disse.

— Então vê aí pra mim quantas cidades tem no Uruguai.