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Oferenda

Um pardal morto, cuidadosamente acomodado ao lado da minha cama, me velava. O despertador não tocou, levantei atrasado, esbaforido, quase pisei no cadáver. Zara em cima do roupeiro, me observando. A felina cabeça adernada, a ponta do rabo se retorcendo.

Já sei que é presente. Explicou-me Vanessa, a veterinária, em seu jaleco impecável. Cabelo ruivo, sorrisão espetacular, daqueles de doer os olhos de tanta luz. É uma oferenda, a Zara quer ensinar você a caçar, disse.

Dei sorte, na verdade. Já ganhei morcego, lagartixa, camundongo. Mortos, vivos, em coma induzido. Atrasado, não pude lidar com meu presente na hora, saí correndo de casa, dando nó na gravata. O pardal ficou lá, desafortunado, durinho sobre a gélida lousa. Ao final da tarde, quando retornei, continuava no mesmo lugar. Zara de plantão ao lado dele, caso eu não tivesse entendido o óbvio: que era uma oferenda, a ser aceita, e muito celebrada.

Enrolo o pardal em papel toalha, coloco-o respeitosamente no lixo. Zara me seguindo com seus passos de veludo, miando, aguda. Tento compensá-la com um afago. Peço que me traga a Vanessa da próxima vez — viva, por favor. Zara me ignora, resvala pra cima da estante da sala. Lambe as patas. Me encara, sisuda. Pisca.

Fome, hora de jantar. Tiro o meio frango do refrigerador, abro a embalagem, descarto isopor, plástico, besunto a carne com tempero pronto, coloco na assadeira. Ligo o forno.

Esfinge sobre a lava-louça, Zara me observa. Eu em pé, terno ainda, gravata afrouxada, camisa branca respingada de tempero pronto, assadeira com o meio frango besuntado na mão, o forno aquecendo.

Zara alterna olhares graves: eu, o frango, o frango, eu. Desce da lava-louça, o cetim de sempre. Abandona a cozinha em silêncio, sem olhar pra trás.

Nunca mais recebi oferendas.

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Arca

Noé se ajeita no banco, espia o céu carregado, gira a chave, arranca o ônibus. Linha 601, circular metropolitano, mais de uma hora cada volta. Até a primeira parada, dez minutos só seus, ônibus vazio, braço pra fora, vento no rosto, cigarro, cantoria, delícia.

Na primeira parada, apenas o casalzinho sorridente, loiro, morena. Noé abre a porta, sobem. Na segunda, mais um, moreno e loira. Sobem. Depois duas jovens às carícias, dois senhores de mãos entrelaçadas. Em seguida mais dois ou duas, um e uma, uma e um, difícil saber, os olhos de Noé embaralhados de tanta combinação. Pretos, pardos, brancos, vermelhos, amarelos. Cabelos lisos, crespos, cacheados, raspados, faltando. Sempre subindo, aos pares, parada por parada.

Ônibus lotado, pulula. As paradas agora todas vazias como nunca antes. Noé com um troço estranho no peito, não sabe se angústia, euforia. Mãos firmes no volante, pensamento mergulhado no asfalto. Faz o sinal da cruz, beija a medalhinha dourada.

Chega a chuva. Cântaros, divinos, inclementes. Água que sobe, ergue o ônibus. Noé solta o volante. Flutuam, esmo. Agora é com Deus, pensa.

Quarenta dias, quarenta noites, águas incessantes. Noé fuma, espia os passageiros pelo retrovisor. Conversam, animados. Pares que trocam o tempo todo. Abraços, beijos, risadas.

A chuva cessa. Passageiros adormecidos, empilhados. Alguns roncam. Noé insone, olha em volta: cidade toda submersa, trezentos e sessenta graus de espelho d’água sem fim. Nada do que era é.

Mais cento e cinquenta dias à deriva, Noé sem pregar o olho, cigarro se foi. Arremessa a medalhinha dourada pela janela. Chora. Quer apertar o botão, abrir a porta do ônibus, deixar a água entrar, acabar com tudo aquilo.

Adormece sobre o volante.

As águas baixam, cuidadosas. O ônibus, linha 601, circular metropolitano, pousa sobre a lama da praça da República. Os passageiros aguardam, comportados, silentes. Quando Noé despertar, sairão, dois a dois, mãos dadas, sob a bênção do arco-íris, deslumbrante como nunca antes.

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Tambaqui

Boné, macacão, botas de borracha, molinete novo. Meu pescador mirim sentado no velho píer do pesque e pague. Coça a bochecha gorda de menino. Funga. Balança impaciente as pernas curtas sobre a água do lago. Olhar fixo na boia inerte.

Lá na outra margem, o adolescente magrelo grita, vara encurvada, puxa. O enorme tambaqui alçado da água pipoca na grama. Assobios, palmas, risadas. Meu pescador favorito me olha, mortificado. Pede pra eu trocar a isca. Troco. Arremesso a nova isca na água, devolvo o molinete. Ele segura, mãos moles. Firme, digo, senão o peixe leva tudo embora. Não tem peixe nenhum, resmunga. O tambaqui fantasmagórico pairando sobre nós.

Nosso balde retornará vazio, acontece. Mistérios do lago: talvez tambaquis não gostem de meninos, nem de molinetes novos, nem de iscas de pais atrapalhados. Vontade de mergulhar, agarrar o insolente pelas guelras, enfiar o anzol naquela boca de peixe, ver a maldita boia afundar pelo menos uma vez.

Em breve perderá a paciência, vamos embora pai, dirá. Comeremos pizza no caminho de volta, pepperoni, sorriso. Por mim, ficaríamos aqui no píer. Anos a fio. Ele assim, parado sob o poente: boné, macacão, bochechas vermelhas de tanto coçar. Sem crescer um milímetro sequer.

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Caim

Consagrado chef vegano, Caim olha com desprezo para Abel e seus espetinhos de cordeiro. Impossível a mesma mãe, pensa.

No festival anual de gastronomia, os exuberantes shitakes flambados com endívias de Caim são preteridos pelos espetinhos com farofa de ovo de Abel.

Plebe ignara! Hereges! Deus tá de sacanagem comigo, só pode.

Caim mói, remói, destila.

Cedo pela manhã, o corpo de Abel é encontrado no coreto da praça da Matriz. A boca cheia de cogumelos. Espetinhos cravados nas axilas, virilha, reto.

Desde então, tudo que Caim toca vira carne.

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Borboletas

Confinada à cadeira de rodas, já se vão sete anos em silêncio. O vestido bege, os cabelos brancos, macios de algodão. O olhar passado, lacrimoso, fixo na janela que dá pro jardim.

Numa ensolarada manhã, dispara a soluçar borboletas. Às dezenas. Primeiro as brancas, arredondadas, que pululam nos campos. Logo as amarelas, elípticas, das matas úmidas. Em seguida as vermelhas, barrocas, dos sonhos de adolescência.

O velho marido, atônito, enxota-as pra a rua, fecha as janelas. Então percebe de onde vêm. Pasmo, ajoelha-se, beija aquelas mãos frias, quebradiças, afaga os cabelos de neve. Chora. As asas coloridas estampando-lhe a antes branca camisa.

Passam-se dias, casulos.

Certo entardecer, ela soluça borboletas marrons, enormes, veludas. Ele se preocupa. Dá chá de boldo, reforça a sopa. Dorme no sofá, sentinela.

Mãos sobre a barriga, ele sonha. No sopé da cascata, a borboleta azul flutua, cintila, sol molhado. Pousa na cadeira de rodas vazia. Aguarda a janela que dá pro jardim.

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Terapia

Sessão 1: Ontem rompemos, enfim. Relacionamento mutuamente abusivo, sabe? Alívio enorme.

Sessão 2: Conversamos. Transamos, na verdade. Vai ser só sexo daqui pra frente. Sábia decisão.

Sessão 3: Tudo muito claro, sabe? Ambos vendo outras pessoas. Conversamos sobre isso. Libertador.

Sessão 4: Não deu as caras ontem. Estranho.

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Partes

Cada semana ele perdia uma parte. Depois de velho deu pra querer chamar atenção, ela pensou, impaciente.

Foi-se a orelha direita. Não ouve bem mesmo, não vai fazer falta, resmungou. Deve estar se achando um Van Gogh.

Na semana seguinte, foi-se o pé esquerdo. Na outra, a mão direita. Depois o nariz. Ela se irritou: aquilo já estava passando dos limites. Para com essa exibição ridícula! ordenou. Em vão. Foram-se os olhos. Os braços. Pernas. Pescoço.

Restou somente a cabeça, lisa como um ovo.

Encolhida no sofá, ovo apertado contra o peito, ela enfim chove.

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Vigília

O Pai adormecido na poltrona da sala. O cigarro aceso entre os dedos inertes, a fumaça escorrendo pro teto. A cinza longa, recurvada, ponto de queda. Se a bagana cair no tapete, labaredas.

Aproximo-me, passos de gato. Subtraio o cigarro, bato a cinza, enterro a bagana no cinzeiro. O Pai dormindo, fundo. A boca entreaberta. O suave roncar.

Afasto-me.

Quando acordar, nada restará do meu gesto. Pensará que colocou a última bagana da noite no cinzeiro, como sempre fazia. Então não houve o perigo, outros mundos em chamas, melhor assim. Amanhã será apenas mais um dia seu a atravessar sem pressa, a margem de lá sob a névoa, à espera.

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Bar do Nicolau

Duas da manhã, TV ligada, depressão a galope. Tadeu esfrega os olhos vermelhos. Pega o telefone, liga pro Bar do Nicolau. Pede pra falar com o Josias.

Diga que é Tadeu, da mesa sete. É urgência.

O caixa acena, aponta pro telefone. Josias vem, descansa a bandeja no balcão, seca as mãos na casaca, atende. Sorri. Prazer em falar com o senhor, seu Tadeu. Sentimos sua falta hoje.

A conversa se estica. Seu Nicolau observa, impaciente: bar lotado, um garçom a menos, que palavrório sem fim é aquele? Batuca o relógio de pulso com o indicador, esbugalha os olhos empapuçados, ergue as palmas pro teto. Josias encolhe os ombros, cobre o bocal do telefone, explica: é seu Tadeu, da mesa sete.

Tadeu já se sente melhor. Desliga a TV. Talvez até durma. A conversa avança. Josias puxa a banqueta com o pé, senta, afrouxa a gravata borboleta, ajeita os cotovelos sobre o balcão, troca o telefone de orelha.

Seu Nicolau se afasta, conformado.

A madrugada amolece.

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Sapucaia

Apressado, cortando caminho pelo gramado, deparo-me com essa árvore de folhas que são flores, ou de flores que são folhas, difícil saber. A folha começa verde, logo se veste de rosa. A flor ensaia ser rosa, muda de ideia, esverdeia-se.

Embasbacado, esqueço ruas, esquinas, buzinas.

É criatura exótica, filha raptada da Mata Atlântica, contou-me um sábio. Lecythis pisonis. Sapucaia, para os agora íntimos.

Folhas floridas, flores folhadas. Majestosa, em eterno dilema: não se sabe folha ou rosa, flor ou verde, árvore ou aquarela.

Depende do ângulo, do olhar, se de bicho, se de gente.

Eu que tão pouco sei de sapucaias. Sempre verde-musgo, monocromático, mergulhado na fotossíntese nossa de cada dia.