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Janela

Nove da noite, apartamento sem varanda, décimo oitavo andar. O pai temperando o frango para o dia seguinte, a mãe recolhendo as roupas da máquina de lavar. No sofá da sala, olhos atentos à TV, os três meninos: Lucas, Tiago, Mateus.

Lucas, o mais velho, abandonará logo os estudos, abrirá um bar, com sinuca. Casará três vezes, serão três divórcios, cinco filhas. Endividado, hipertenso, diabético, dominará a arte da anedota. Teatral, as negras olheiras, o gestual preciso, a voz defumada. Os habitués em volta, inebriados.

Tiago, o do meio, fará ciências contábeis. Falará somente quando não houver outro jeito. Será promovido a auditor fiscal. Detectará, em breves instantes, incongruências sutis em vastas, profundas planilhas. Dormirá nada, os olhos auditando o teto, os pés irrequietos sob o lençol. Vagará na madrugada por ruas distantes: vestido longo, batom, peruca.

Mateus, o caçula, mostrará cedo seu talento raro para o combate. Acumulará vitórias acachapantes no octógono. Terá fama, dinheiro, um documentário. O rosto sem marcas, os olhos miúdos, venosos. Será atropelado em sua corrida matinal, motorista qualquer, embriagado. Paraplégico, aplicará um mata-leão em si mesmo, a corda de pular libertadora.

O pai coloca o frango temperado no refrigerador. A mãe termina de estender a roupa. Acomodam-se no sofá entre os meninos. Lucas, pai, Tiago, mãe, Mateus. Afagos. As luzes da TV bruxuleando pela janela. Décimo oitavo andar.

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Ascensão

Não quer me dizer seu nome, pelo menos? Não? Não mesmo? Tudo bem. Vamos lá. Onde estávamos? Ah, não importa. Agora eu grudo no espelho feito lagartixa, você vem por trás. Isso, assim.

Nunca imaginei fazer isso num elevador. Cubículo sem nenhum conforto. Mas não é que funciona? Tudo vale a pena, se a alma não é pequena, disse o poeta. Isso, agora eu deito, os pés na parede, você senta. Cavalinho, isso.

Como? Plantando bananeira? Não sei se consigo. Vou ficar apontando pra baixo, vai ser estranho. Tudo bem, o céu é o limite! Nossa, funciona. Delícia. Só anda logo, não vou aguentar muito.

Agora você se pendura no teto. Isso, é só empurrar o acrílico pro lado. Assim. Você não acha estranho que a porta do elevador não tenha aberto nenhuma vez? Estamos subindo ou descendo? O quê, parados? Nunca. Elevador parado é antielevador, que muito brochante isso. Aperta um botão qualquer aí, vai. Pra subir, de preferência.

Como não pode apertar? Por quê? Estamos parados há quanto tempo? Dois meses?!? Sério? Não estou nem acreditando nisso. Guinness Book, lá vamos nós! Ai que emoção. Agora sou eu que me penduro, sai daí, isso.

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Sísifo

Manhã ensolarada no parque. Jovens estirados na grama, cachorros inquietos, atletas circulares. Caminho em direção aos aparelhos de ginástica.

Posiciono-me. Espio o céu. Respiro fundo, seguro firme a barra, ergo o corpo. Inspiro, expiro. Vinte. Solto. Admiro meus braços dilatados. Mais vinte. Fartos gomos que se remexem sob minha pele fresca. Mais vinte.

A exaustão chega, volto pra casa.

Entardeço à tela do computador. Meus braços agora murchos, esquálidos. Cruzo-os sobre o peito, apalpo minhas carnes moles, os ossos pontudos. Adormeço no sofá. Sonho penhascos.

Manhã nublada no parque. Volto aos aparelhos. Posiciono-me. Respiro fundo. Vinte. Solto. Mais vinte. Afago meus braços intumescidos. Mais vinte. As grossas veias saltando sob a pele tensa. Mais vinte.

Chega a náusea. Aperto os olhos. Vultos. Arrasto-me para casa.

Anoiteço sobre o teclado. Esfrego meus olhos de areia. Vejo braços finos, desidratados. Meus ossos quebradiços. Adormeço na cadeira. Sonho deslizamentos.

Amanhece. Sol intenso. No parque, casais sentados nos bancos, pipoca, tartarugas inertes sobre pedras, crianças pulando na areia. Na cama, eu. Meus longos braços de chumbo. Posiciono-me. Respiro fundo. Zero. Solto-me. Aguardo a chegada da pedra.

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Zafu

Nosso Mestre desapareceu. Seu zafu jaz vago à nossa frente. Perplexos, meditamos hipóteses.

O Mestre deve ter se desmaterializado. Habita agora cada átomo desta sala. Alguns entre nós conseguem sentir sua inspiradora presença ao tocarem o chão.

O Mestre deve ter pressentido o fim, se recolhido à natureza para a derradeira, solitária meditação. Orvalho, brisa, aurora. Seu corpo evaporando lentamente sobre a relva.

A ausência do Mestre paira densa em nosso ar. Gira, gira, exibe suas múltiplas facetas.

Meditamos angústias.

Ontem tive uma visão do Mestre. Ele estava sem o samuê: vestia camiseta, jeans, tênis. Vagava pela rua de pedestres apressados, ambulantes, gritos, buzinas. Fumava, alheio. O cabelo crescido. Seus olhos úmidos, avermelhados. Vazios de todos nós.

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Cadeado

O barracão nos fundos do pátio. Fosse àquele tempo, a pequena chave surrupiada da gaveta do Pai bastaria. Agora o cadeado requer pé de cabra, algum suor. Óxido ocre-verde que se esfarela.

A velha porta de madeira, conhecida sentinela. Queremos abri-la? Lá dentro em tudo o Pai que falta, a poeira densa, as teias da ausência. Palimpsesto.

Não é lugar de criança, dizia.

A mesa de cedro estará lá. Formão, martelo, grosa, dispostos à Sua meticulosa maneira. Sobre ela, a obra inacabada: andrógino torso, os braços decepados. Nosso pasmo infantil.

A chave proibida ardendo oculta nas nossas mãos de brincadeiras. O cadeado que abria, fácil. E se Ele chegasse do escritório mais cedo?

Por certo sabia. Nosso cheiro ainda fresco no ar amadeirado do barracão, as pequenas pegadas na serragem do chão. Só não queria estar presente enquanto descobríamos seus outros filhos, talhados à sua imagem.

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Mariposas

Conta-se que subiram lado a lado a longa escada em espiral, atingiram o cume do farol. Ofegantes, agarraram-se ao parapeito, inspiraram o mar aberto, vento e sal.

Uma retirou o livro da sacola, a outra se aproximou, ombro a ombro. Afagaram a capa de couro, baixos relevos, tempo, toque. Folhearam, as páginas amarelo-ouro tingindo as pontas dos dedos.

Recitaram, uníssonas.

Chegada a noite, lançaram o livro ao ar, mar, vento. Frágeis, as páginas se despedaçaram, flutuaram. Mariposas do Verbo, bateram asas por toda a Terra. Eloquentes, acasalaram-se, aleatórias, promíscuas. Desovaram, descontroladas.

Ovos que se afundam, larvas que brotam, se recolhem, casulos que não tardam. Rompem-se em múltiplas cores, ânsias, luz, ar, mar.

Uma pousa aqui, asas bem abertas.

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Mãos

Ele aguarda. Marcaram às doze no restaurante de praxe, ela chega doze e quinze, beijo breve na boca, senta-se, ajeita-se na cadeira, a mão direita acomodando os cabelos atrás das orelhas, a esquerda oferecida à dele sobre a mesa, palma pra cima. Ele repousa a mão sobre a dela.

Doze anos daquele gesto: ela oferece a palma esquerda, ele a cobre com a mão direita, ela aperta, leve, apenas mais que um toque. Hoje não: a mão dela jaz inerte sobre a mesa, a dele por cima, náufraga.

Então ele soube.

Aperta. No rosto dela, o alarme confuso daquela pressão inédita, a mão recolhida em reflexo, o sorriso sem alegria. Ela chama o garçom, pedem o de praxe. Alimentam-se, trocam cotidianidades, inofensivos. Pagam a conta. Combinam o horário da volta para casa.

A larga avenida, três pistas de cada lado. Ele dirige em silêncio, as mãos firmes no volante, repassa o trajeto, doze anos, quando? Ela observa carros pela janela, cabeça escorada no vidro, as mãos pousadas no colo, entrelaçadas, a esquerda firme sobre a direita.

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Epidemiazinha qualquer

Apartamentos sobre apartamentos. Mulheres, homens, crianças entre paredes. Amor, vigiar, penar. Gritos. Nenhum cantar.

Lá embaixo, a enfermeira mascarada vai depressa. O entregador sem máscara vai depressa. O homem sem máscara se exercita, devagar. A mulher mascarada passeia com o cachorro, devagar. O porteiro perambula, devagar, a máscara pendurada no pescoço.

Devagar… as janelas olham para dentro, assombradas.

Eta vida comprida, meu Deus.

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Lift facial

Observa-se ao espelho. Seu rosto na plena lisura dos vinte, impecável topografia. Toca a testa, sente o nariz, as frescas bochechas. Cobre a boca tenra com a mão. Cerra os olhos.

É chegada a hora.

Começa pela barba. Será espessa, regular. Os fios grisalhos entremeados aos negros. Dos cabelos deixa apenas as raízes mais profundas. Alvos, finíssimos, desgrelháveis à mínima brisa. Unta, penteia-os para trás, elmo prateado.

Talha olhos venosos, o vermelho túmido brotando sob o branco pasmo. Pardos na íris, abismos nas pupilas. Sulca a testa, os cantos. Escava valos na pele árida, rumo à boca, pálida, abre caminho para as águas salobras.

Admira-se ao espelho.

Pronto. Que venham.

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Azul de mar

Deslizo pelo paraíso, modorra azul. As nuvens lá embaixo, acolchoadas. Serviço de bordo concluído, tripulação recolhida. Sozinho na fileira de três assentos, bocejo.

Do nada, o solavanco. Meu resto de vinho tinto se espalha no ar. Bato a cabeça no teto. Caio de costela sobre o braço do assento. Dor. Gritos ao redor.

Segundo solavanco, mais violento. Arremessado ao corredor, fico preso entre as fileiras. Sinto sangue na boca, os braços dormentes. Meu coração se debatendo na traqueia.

Terceiro solavanco. Explosão. Cheiro de fumaça. Pensamentos catastróficos. Tripulante correndo por cima de mim.

Escorrego paraíso abaixo. Atravesso nuvens. Entalado entre as fileiras, eu, comigo mesmo, nenhuma companhia, nenhuma distração. Burburinho sumindo ao fundo, estranha paz se assentando em mim. Pela escotilha, vejo o céu, azul de mar. Lindo de morrer.