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Regresso

O bule de café por terminar e o charuto fumado pela metade me dizem que tu voltas ainda pela manhã, Henrique. Ainda bem. Basta te ausentares da minha vista para que a angústia, essa minha tão velha conhecida, pouse. Aflição inevitável, estúpida. Não é ciúmes, bem sabes. Te compartilho com o mundo em sincera alegria. É que quando sais, essa casa fica enorme. Engasgo com tanto ar.

Se me ausento, não te abalas. Às vezes nem percebes, não é mesmo? Então meus retornos, para ti, não têm a euforia canina que experimento toda vez que voltas, que giras aquela chave. Nisso perdes.

Angústia nem cogito que sintas. Por isso te quis.

Deves estar na padaria. Tão fácil para mim te enxergar. Os cabelos grisalhos, encaracolados, a barba macia. Percorres as múltiplas espécies de pão na prateleira com teus olhos encantados. Acaricias de leve a barriga, pensativo. Inútil dilema: escolherás dois tipos de pão a esmo, pela mera aparência, sem perguntar do que são feitos, como sempre. Quisera eu.

Ou talvez estejas na banca do Arthur. Conversa mole, leve. Cafezinho. Esse Arthur que te conhece há mais tempo do que eu, melhor. Já percebeste que tua risada e a dele estão idênticas? Sintonias que lapidas, paciente, com tudo que te é caro. Comigo. Eu, meu esforço diário para não nos dissolver em uma pasta informe, em que nenhum de nós se reconheça. Disso não sabes, Henrique.

Tantas vezes voltas para casa carregando bobos agrados: empadinhas de camarão, pastéis de belém. Coisas que devo ter mencionado algum dia que gostava, não lembro. Flutuo na tua larga memória de nós. De quando consegui ficar um dia inteiro contigo em silêncio, respirando tua presença, lembro bem. Despida das palavras, pude enfim reconhecer que te amava. 

Agora que não estás aqui, controlo minha agonia. Estou aprendendo, acho. Presente invisível que te ofereço.

Ouço o giro da chave. Meu coração corre.